Ainda na senda do cinema, queria também deixar um referência ao maior realizador de cinema português: João César Monteiro. Um génio louco que realizava, escrevia, escolhia a banda sonora e fazia a direcção de actores dos seus filmes.
Em todos os seus filmes podemos encontrar o génio, ora nas imagens ora nas palavras.
No seu último filme (antes de morrer)"Vai e Vem" (2003) duas cenas são notáveis: a do broche chinês e a verdadeira história de Cristo.
A primeira encontrei no youtube, ficam com ela. A segunda, fiz a transcrição do texto, ficam com ele:
Broche chinês
Verdadeira história de Cristo:
Transcrição de excerto do Filme “Vai e Vem”de João Cesár Monteiro (2003)
...
Fausta: A minha alma está parva...Levas-me para cada sítio!
João VuVu: Não tinha nada de extravagante...A casa pertence à Congregação de S. Vicente e graças ao serviço voluntário de devotas senhoras, angaria fundos que se destinam a obras de caridade. O padreca é que ensarilhou tudo...São séculos de intolerância tutelada por Turquemada. Resta-lhes a pedofilia, o Arcebispo de Millwakee, o Padre Frederico, etc...
Fausta: Parece que estive não sei onde...
JVV: Tens essa impressão de irrealidade porque estiveste, de facto, no outro mundo. Mas não te preocupes, regressaste viva de entre os espectros.
F: Cheirava a mofo.
JVV: É o cheiro do mundo das quimeras.
JVV: (Brindando)“Salud et deputaciones”
F: À tua
F: Pelo menos serviam bebidas alcoólicas...
JVV: É uma pequena concessão aos tempos modernos. A única, aliás...
F: É bom que haja alguém que se ocupe dos pobres...
JVV: Não têm feito outra coisa há que séculos. Há falta de melhor, até engenhocaram uma religião para os consolar.
F: A vida foi sempre má para os pobres.
JVV: Por isso é que se lembraram de enfiar uma grande patranha nos cornos de um carpinteiro a quem a mulher, uma puta judia, apareceu de barriga. “Que não desse ouvidos, não perdesse as estribeiras”, que o caso não era de repúdio, antes pelo contrário, tinha havido, é certo, intervenção divina. Obra de uma pomba. Mas estava tudo nos conformes. Em estado de graça. Mais e melhor, enquanto a aldeola ria a bandeiras despregadas, convenceram o néscio que a Boa Nova era para ser espalhada pelo mundo fora: finalmente, coisa nunca vista, ia nascer o filho de Deus. “Tarde piaste” arrepelava-se José, tocado pela Luz, “Ó Maria, descobrimos a imaculada fornicação e esqueci-me de apontar a fórmula!”. Olhou de soslaio para os pacóvios da terrinha, fez a trouxa e abalou com a mulher a cavalo num burro. Talvez tenha deitado contas à vida e chegado à conclusão que não ganhou para o susto. O Bendito fruto fez-se homem, e como qualquer pantomineiro que se preza, limitou-se a papaguear a lengalenga que toda a gente já estava farta de saber: que esta vida é um vale de lágrimas...
F: Morreu na cruz...
JVV: Pois morreu. E com grande alarido! Só ao fim de três dias é que conseguiram descalçar a bota. E logo arranjaram modo de o ressuscitar, para que a farsa acabasse em bem. Bem para Ele, e ainda melhor para nós. Faltavam umas rezas e umas benzeduras para edulcorar a outra vida. A do além (só d'Ele, é claro, bem conhecida, por lá ter estado na companhia do Pai). Nessa sim, é que iria ser bom. “Um mar de rosas, um regabofe” e, porque não, um encher até mais não “ademas per secula seculorum”
F: E qual é a solução?
JVV: Não há. O suicídio é uma solução. Se é, e há quem defenda que é, não me interessa. Só o problema é interessante. Nunca a solução. E o ser humano, ou o que dele resta, tem que ser capaz de viver com a insolubilidade da própria vida.
Mallorca (Marco 2019)
Há 5 anos
1 comentário:
Bravo!
E um acréscimo à minha cultura :)
Continua :)
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